Sobre o direito de estar nu
(Nudez, Obscenidade e Direito Penal)
por
Antonio Januzzi M. de
Godoi
O crime de ato obsceno, previsto no art. 233, do Código
Penal brasileiro, descreve a conduta de “praticar ato obsceno em lugar público,
ou aberto ou exposto ao público” e comina pena de detenção, de 3 (três) meses a
1 (um) ano (ou multa), para o seu agente. Mas o tipo penal não descreve em que
consiste, exatamente, o “ato obsceno”. A interpretação sobre a obscenidade do
ato é deixada ao destinatário da norma, a quem cabe avaliar o seu significado
com referência à ordem de valores vigente na comunidade. De acordo com a
interpretação dos tribunais, no entanto, obsceno é o ato praticado com
lubricidade, conotação sexual evidente e ofensiva do pudor coletivo.
A obscenidade no comportamento de alguém pode se
materializar por formas diversas: o sexo, a auto-satisfação, o exibicionismo, o
streaking, ou até o desaperto das necessidades fisiológicas, em local público ou
acessível ao público. Em todas elas, entende-se haver uma ofensa ao sentimento
de médio de moralidade da comunidade. É esse o fundamento teórico que legitima,
no plano formal, a tipificação do delito.
Materialmente, no entanto, a incriminação de uma conduta cuja
ofensividade se resume a uma dimensão moral não pode se justificar
racionalmente. Pelo menos, não em uma ordem jurídica construída sobre os
fundamentos do Estado Democrático de Direito, em que o respeito pela livre
conformação moral do indivíduo é uma garantia e o direito de expressar
livremente qualquer espécie de convicção (sobretudo de natureza moral) deve ser
assegurado em termos amplos, incondicionáveis ao teor de seu
conteúdo.
O
fundamento “racional” para a incriminação do ato obsceno, em termos dogmáticos,
estaria no sentimento de repugnância provocado pela obscenidade na consciência
dos membros da comunidade destinatários daquele ato de comunicação. Ora, esse
fundamento pode ser utilizado para justificar também “racionalmente” a proibição
de manifestações de afeto homossexual em lugares públicos. Suas premissas –
ambas, incorretas – são, em primeiro lugar, a atribuição ao direito penal de uma
tarefa de conformação ético-social do cidadão; além disso, o tácito
reconhecimento da legitimidade de uma censura estatal exercida sobre atos de
comunicação de moralidade “duvidosa”.
Isso não significa que o direito não possa regular a
manifestação do pensamento, nos casos em que o uso da liberdade de expressão
resulta em ofensa ou lesão do interesse de terceiros: o emissor de uma opinião
ou idéia pode responder civilmente pelos efeitos produzidos por seu
comportamento. Em matéria penal, no entanto, a legitimidade da responsabilização
do agente de uma determinada conduta está condicionada à verificação da
lesividade da conduta para um bem de titularidade de terceiro(s), e mais: a
ofensa penalmente relevante deve transcender aquele interesse individual,
atingindo sensivelmente um metainteresse coletivo na preservação daquele bem
individual. E o sentimento médio de moralidade de uma sociedade não se inscreve
entre aqueles interesses cuja tutela interessa à ordem coletiva. Qualquer
tentativa de se encontrar um denominador moral comum, se considerarmos a
variedade de padrões morais existentes em uma coletividade de homens livres,
resultaria inevitavelmente na adoção do parâmetro próprio de uma pequena fração
dessa coletividade, com a consequente exclusão da expressiva parte constituída
pelo sentimento de moralidade de todos os demais.
Além disso, especialmente no campo da regulação dos costumes, é
preciso compreender que o direito penal não pode servir de instrumento para a
tutela de valores ético-sociais internalizados pelo cidadão. O direito penal não
atua como professor abstrato de educação moral e cívica (e, muito menos, de
etiqueta). O Estado não pode, legitimamente, por meio da imposição de punições
criminais, embutir valores assumidos como justos ou corretos (pela maioria) no
sistema de crenças e opiniões do cidadão livre e pleno em direito. O que cabe ao
Estado, com efeito, é garantir a proteção de certos bens jurídicos especialmente
relevantes para a estabilidade da ordem social, nos termos da Constituição. Isso
quer dizer que a escolha político-criminal de bens jurídicos a proteger por meio
da norma penal deve se orientar por uma ordem complexa de valores
recorrentemente oponíveis entre si, a partir dos quais se individualizam bens e
interesses cuja proteção pode ser racionalmente justificada por sua necessidade
para a estabilidade daquela própria ordem axiológica (constitucional). E não
tenho dúvidas de que um suposto sentimento médio de moralidade da população não
se inscreve entre os valores constitucionalmente reconhecidos como essenciais
para a estabilidade da específica ordem de liberdade normativamente construída
pela Constituição da República de 1988. Pelo contrário.
O Estado Democrático de Direito assegura a cada indivíduo, pleno em direito e autonomia, a liberdade de criar e estabelecer sua ordem pessoal de valores e um sentimento individual de moralidade baseado em sua experiência, em sua razão e em sua sensibilidade. É função de um tal modelo de Estado assegurar, precisamente, a liberdade de auto-conformação moral do indivíduo e, ainda mais: a liberdade de expressá-la diante da sociedade de que toma parte. Um Estado que proíbe a nudez pública do cidadão e a sanciona criminalmente é um Estado fundamentalmente autoritário e moralista. É um Estado que busca estabelecer pela força um padrão civilizatório, e que ignora a dimensão de uma verdadeira liberdade constitucional de manifestação do pensamento e, ainda mais, que se assume como um professor infalível de moral, definindo a nudez (quando não a classifica, segundo os parâmetros próprios de uma minoria, como artística) como forma de expressão necessariamente ofensiva. É, por isso mesmo, um Estado neurótico. Uma sociedade psiquicamente equilibrada não perverteria a nudez, criminalizando-a ao mesmo tempo em que tolera a sua comercialização sob a forma vulgar da pornografia ou de representações degradantes na TV aberta. Uma sociedade sã reconheceria a nudez como uma condição primária da natureza humana. Uma sociedade decente educaria para o sentido funcional do ato de se vestir, quebrando a associação milenar entre a nudez e inadequação, a nudez e o erro, a nudez e a vergonha. A nudez é a mais direta representação da verdade e não estaremos prontos para apreende-la se, diante dela, os nossos olhos se injetam (ou se abaixam). Seremos livres quando conhecermos a verdade, e para conhecê-la precisamos ir morar em um acampamento hippie, antes, reconhecer por que razões sociais temos necessidade de ocultamento do eu, em sua dimensão mais imediata: o corpo. E para isso, talvez um bom primeiro passo esteja no reconhecimento de que sem nudez não há verdade: há vergonha.
O Estado Democrático de Direito assegura a cada indivíduo, pleno em direito e autonomia, a liberdade de criar e estabelecer sua ordem pessoal de valores e um sentimento individual de moralidade baseado em sua experiência, em sua razão e em sua sensibilidade. É função de um tal modelo de Estado assegurar, precisamente, a liberdade de auto-conformação moral do indivíduo e, ainda mais: a liberdade de expressá-la diante da sociedade de que toma parte. Um Estado que proíbe a nudez pública do cidadão e a sanciona criminalmente é um Estado fundamentalmente autoritário e moralista. É um Estado que busca estabelecer pela força um padrão civilizatório, e que ignora a dimensão de uma verdadeira liberdade constitucional de manifestação do pensamento e, ainda mais, que se assume como um professor infalível de moral, definindo a nudez (quando não a classifica, segundo os parâmetros próprios de uma minoria, como artística) como forma de expressão necessariamente ofensiva. É, por isso mesmo, um Estado neurótico. Uma sociedade psiquicamente equilibrada não perverteria a nudez, criminalizando-a ao mesmo tempo em que tolera a sua comercialização sob a forma vulgar da pornografia ou de representações degradantes na TV aberta. Uma sociedade sã reconheceria a nudez como uma condição primária da natureza humana. Uma sociedade decente educaria para o sentido funcional do ato de se vestir, quebrando a associação milenar entre a nudez e inadequação, a nudez e o erro, a nudez e a vergonha. A nudez é a mais direta representação da verdade e não estaremos prontos para apreende-la se, diante dela, os nossos olhos se injetam (ou se abaixam). Seremos livres quando conhecermos a verdade, e para conhecê-la precisamos ir morar em um acampamento hippie, antes, reconhecer por que razões sociais temos necessidade de ocultamento do eu, em sua dimensão mais imediata: o corpo. E para isso, talvez um bom primeiro passo esteja no reconhecimento de que sem nudez não há verdade: há vergonha.
A vergonha da nudez foi o nosso primeiro erro.
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